O sonho de Anami

O sonso de Anami es el libro El sueño de Anami traducido al portugués brasileño. Puedes leer toda la informacion sobre la versión española de este libro pinchando aquí.
Mientras esta web no esté traducida al portugués brasileño, voy a poner un poco de informacion del libro en lengua portuguesa, traducido por Ananda (Rosemari Gonçalves).
Tradução por: Ananda (Rosemari Gonçalves)
Gênero: Romance de Ficção Científica e Aventuras
Tema: Espiritualidade Prática
Anami, ser Gonu meio humano meio animal, nos convida a viver dentro de sua mente por um dia. Dia este em que sucederam uma série de acontecimentos que a levaram a refletir sobre o amor e inspiraram nela um sonho peculiar, onde o ancião Vassi, um humano, relata a vida de outra Anami, também Gonu, e de sua irmã gêmea não reconhecida, Mani, que será raptada.
Ao longo da estória, Anami terá de passar por diversas provas a fim de resgatá-la. Provas que a levarão, pouco a pouco, a outro estado – tanto físico como de conciencia e sentimentos, metamorfoseando-a. Este livro cresce na mesma medida em que Anami vai crescendo.
Com suas perguntas, respostas e atitudes diante das diversas situações encontradas, Anami nos mostrará sábios e refrescantes modos de respondermos aos problemas cotidianos e às questões existenciais e relacionais que enfrentamos diariamente, dando lhes uma solução do ponto de vista espiritual e prático da Consciência. – diferente da religiosidade.
Os leitores podem estar certos que eu me diverti imensamente enguanto escrevia esta novela. Agora é com vocês! Que a desfruteis como eu!
Capítulo 5, Parte II: Negação
Uma luz tênue acariciou o rosto de Anami enquanto ela esticava seu corpo com alegria. Sentia-se um pouco apática e confusa. As palavras trocadas no dia anterior com Orwell a tinham afetado muito, embora ela as considerasse insignificantes. Estava perplexa e um tanto deprimida.
Ela olhou em volta e se deparou com uma grande sala, com uma cama de dossel em que estava deitada, uma poltrona, uma cômoda com espelho e banquinho, um cabideiro, um tapete e um urinol metálico esmaltado.
Com o nariz enrugado, Anami se levantou, pronta para abrir a porta discretamente e olhar através de uma fresta para saber onde estava, mas ao passar pela cômoda decidiu sentar no banquinho para primeiro ajeitar o penteado e recompor-se enquanto refletia sobre como agir agora. Qual foi sua surpresa quando, ao invés da gorducha Gonu de cauda peluda de cor castanha, orelhas de lebre e cabelo vermelho encaracolado, viu diante de si uma magra Íris de uma cor azul pálida, sem cauda, com orelhas pontudas e salientes muito finas e cabelos loiros, lisos e muito longos. Quase teve uma parada cardíaca! Assustada e com medo, ela sentou no banco e começou a tossir artificialmente e do modo mais forçado e ultrajante que conseguia, porque uma vez tinha lido um e-mail que explicava que fazendo isso, tossindo, provocava contrações musculares intensas muito eficazes na interrupção voluntária de uma parada cardíaca. Tal foi seu choque!
- Então, então... Não foi tudo um sonho! –Comentou em voz ligeiramente alta, com o nariz parecendo inteiramente uma uva passa e já meio chorando– Não pode ser, deve ter sido um sonho, –Continuou insistindo para si– O rapto do meu irmã Ninse, o sepultamento, Orwell, Lamaria... Tudo era verdade, então... Horror! Não, não poderia ter sido verdade. Tudo é um sonho muito vívido do qual eu ainda não despertei. Anami, acorde, vamos! –Disse, meio desesperada, ainda não confiando no que dizia para si mesma–
Anami desejou levantar e sair correndo do local, como se assim fazendo pudesse escapar de sua situação, mas quando fez isso muito impulsivamente uma ligeira tontura a dominou e obrigou a sentar-se novamente para evitar cair no chão imediatamente, permanecendo cega e à beira da inconsciência por alguns segundos.
Anami, frustrada e desesperada, começou a soluçar. cruzando os braços sobre a cômoda, curvando-se e apoiando a cabeça sobre ela. Em momentos como este gostaria de ser uma avestruz. Soluçando e ainda frustrada, reviveu em sua memória tudo o que tinha acontecido nos últimos meses, especialmente desde esteve na casa de Lamaria com Orwell, apoiando-a e dando-lhe assistência. Orwell... Este ser tão estranho que constantemente vivia dizendo coisas muito raras e tendo estranhas visões da realidade que se tornavam às vezes tão lógicas que ela ficava refletindo sobre elas por muitíssimos dias.
- O que foi que você disse ontem? Não consigo lembrar nada, apenas sei que não gostei e me senti e continuo me sentindo um pouco zangado com ele... Oh, sim! Disse que sou uma viciada... Que absurdo! Tudo isso é uma loucura! Não pode ser verdade. É impossível. Eu tenho que estar sonhando ou sim... –E tentou convencer a si mesma–
Como gostaria de escapar da realidade agora!
Anami levantou o rosto umedecido e olhou no espelho, tentando reconhecer algo de si nele. Suas emoções eram desencontradas. Por um lado, sentia rejeição e condenação extremas diante da imagem que via refletida. Era um sentimento de repulsa e desprezo muito instintivo e visceral, acompanhado de muita raiva.
Por outro lado, para ser verdadeiramente honesta consigo, ela tinha de admitir que não havia nada errado com a mudança e que sua imagem nova era muito mais luminosa, harmoniosa e clara. Como é que podia, então, rejeitá-la? Por que se sentia em pé de guerra? Para Anami isso era totalmente incompreensível, como tudo o que estava acontecendo... Ela se sentia tal como um personagem fictício em um jogo de computador a funcionar por um capricho de alguém pirado.
Enquanto Anami permaneceu absorta em seus pensamentos, Lamaria penetrou na sala.
- Que bom você ter se levantado. Temíamos que o estresse emocional pelo qual você está passando a tivesse derrubado completamente. Ontem à noite você nos deu a impressão de que já estava no limite e não suportava mais –Comentou Lamaria–
- E é verdade que não agüento mais! –Disse Anami virando-se para ela com olhos intumescidos e inchados por ter chorado tanto–
- Oh, não! Não... Não fique triste meu amor, muito depressa você vai descobrir a beleza de tudo isso. Venha, deixe-me penteá-la! –E enquanto dizia isso, Lamaria sacou uma grande escova de madeira que estava sobre a cômoda e começou a pentear os cabelos de Anami–
Anami fechou os olhos permitindo-se sentir um formigamento muito agradável e relaxante em sua cabeça, pela suave massagem que Lamaria estava fazendo ao penteá-la o mais delicadamente que podia.
E assim, como um cachorrinho pequeno, Anami começou a afundar em um estado agradável, até que sua mente despertou bruscamente após um ligeiro toque das cerdas da escova na sua orelha direita.
- Não, é melhor que não me penteies –Disse rudemente afastando-a, enquanto desviava a cabeça da mesma maneira rude e lhe arrancava a escova da mão–
- Por que não? Pensei que estava gostando e ajudando a relaxar.
- Mas meus ouvidos... Eles são tão finos e frágeis…
- O quê? Não quer que eu te penteie os ouvidos? –Perguntou, surpresa, Lamaria–
- Só me faltava agora rachassem e começassem a sangrar gotas de sangue sabe-se lá de que cor: preto, roxo, verde ou fluorescente... –Respondeu Anami, enojada–
- Vermelho
- O quê?
- Vermelho. Nosso sangue é vermelho –Disse, em tom cômico, Lamaria–
- Pelo menos ainda tenho algo normal. -Anami respondeu, para mostrar clara e abertamente sua frustração–
- Tudo em você é normal. A única diferença é que antes você se via diferente e agora acredita que é de outro jeito. Mas, na realidade você é exatamente a mesma. Tudo o que mudou é que agora você vê mais partes de si mesma que antes não via. -Explicou Lamaria, depois de recuperar a escova–
- O que eu não via antes? O que eu não vejo agora é a minha cauda bonita e sexy! –Disse Anami, frustrada–
Lamaria deu um meio sorriso, fazendo uma careta através do espelho, como se dissesse: "Veja, assim é a vida" e com a escova de cabelos em mãos começou a penteá-la novamente.
Não se preocupe. Nossas orelhas não são tão frágeis como parecem. Sim, elas são finas, quase transparentes, mas são feitas de tecido cartilaginoso mais forte do que muitas outras partes do nosso corpo. Não tenha medo, relaxe e aproveite –Disse isso tanto amor e ternura que Anami foi começando a se dar ao luxo de reviver novamente a agradável sensação de ser mimada–
Uma vez relaxada e descansada, Anami abriu seu coração completamente a Lamaria e pôde expressar seus sentimentos:
- Ah, eu adoraria ir para a cama dormir e não acordar mais ou acordar horas depois para constatar com surpresa que nada do que aconteceu e está acontecendo é real. Quem dera nada isso nunca tivesse acontecido. Orwell e você dizem que agora eu sou mais sábia, mas eu preferia ser como antes, quando era menos inteligente. A gente vive melhor quando nada sabemos. Pelo menos, antes eu me sentia feliz. Agora, no entanto, sinto como se estivesse em um pesadelo e eu me pergunto... Para que serve, então, ser mais sábia? Eu pensei que a sabedoria trazia felicidade, não a removia…
Oh Lamaria! Por que tudo é tão complicado? Eu não gosto de estar desperta. Eu quero voltar a dormir. Ir para a cama, entrar nela, ir dormir e desaparecem… - Meu amor... –Começou a responder Lamaria– Por que duvidar de si mesmo? Por que lutar contra a maré, contra a própria vida? Você segue o ritmo natural da vida. Mais rápido do que muitos, mais lentamente do que outros... Mas o ritmo de vida, que Sat, o Senhor Supremo Verdadeiro, te presenteou... –Ela falou bem macia, suave e docemente– O problema é que quando um conhecimento é aprendido, sempre vem acompanhado por um poder. Agora, certamente você é mais sábia e, portanto, há mais força, mais poder dentro de você. A próxima questão seria saber se você tem controle sobre a força interior que recentemente acumulou, porque o em geral acontece é simplesmente que a princípio não sabemos como controlar com êxito. Só com tempo, com atenção e energia extras podemos ser gradualmente treinados a manter o poder sob controle e dirigi-lo para onde se quiser. E sim, isso é o que acontece com você, meu bem: você não controla essa grande força, e ao invés de canalizá-la em um estado de sabedoria e emoção sublimes, está a desperdiçá-la, atirando para todos os lados e especialmente por esse motivo atrai a depressão e o naufrágio de seu próprio navio…
Anami estava se sentindo desanimada e não conseguia mudar esse sentimento. De certo modo, podia entender o que Lamaria lhe dizia, mas em outro sentido, não compreendia nada. Conseguia entender suas palavras, não o que elas significavam. E não via nenhum relacionamento delas com sua pessoa, porque Anami estava em um estado tão negativo e seus pensamentos eram tão desalentadores, que apesar de ouvir e ter a chave da saída de seu estado emocional na mão, ficava girando e girando sobre si mesma, lamentando-se movida por uma vaidade excessiva não podia ver.
Lamaria acabou percebendo que falar tanto com Anami não parecia mudar o seu estado e que não a ouvia realmente nem podia seguir o seu conselho, decidiu oferecer-lhe maconha para adormecê-la, achando que assim esta poderia passar pelo menos um bom momento.
Anami não soube como responder e o que se seguiu foram cerca de uns dois minutos de um silêncio desconfortável.
- Quer um pouco? Vai te ajudar a relaxar e se sentir bem –Voltou a oferecer Lamaria, com um largo sorriso e um cigarro sem acender na sua mão esquerda, recém retirado do bolso de sua saia longa–
Anami estava insegura sobre como responder, além de manter seu nariz enrugado. Sua mente recordou a conversa rápida travada com Orwell na noite passada sobre as diversas atitudes ou "jogos" que davam à Lamaria aquela sua energia magnética muito especial, mas que, de acordo com Orwell, realmente a estavam atrasando em seu caminho para a sabedoria. Assim como um peixe preso em uma armadilha de rede que pode ir além do espaço que a rede abrange. Anami ainda não entendia bem o que ele queria dizer e continuava a sentir-se ofendida com ele por chamá-la de "viciada", mas não conseguia evitar um sentimento de respeito e alguma confiança em Orwell, uma vez que sempre que ele falava o fazia com uma sabedoria que ela tinha de esforçar-se ainda agora para captar.
Anami, portanto, não iria responder impensadamente. Sua mente imediatamente disse "sim" e a encorajou a estender a mão e aceitar a maconha, mas achou melhor refletir antes porque a experiência lhe sugeria que todas as coisas sobre as quais falava Orwell mereciam, pelo menos, um pouco de reflexão. E isto porque ele nunca falava palavras vazias…
- Ah! Não é justo! Porque me falou tão duramente Orwell sobre o que faz Lamaria? –Ela pensou– Agora, eu não posso aceitar. Se eu aceitar, eu me sentirei mal, pensando que há algo que eu não estou fazendo de certo ou bom para mim, embora eu não tenha idéia do por que ou o quê... E eu queria muito irradiar esta energia que irradia Lamaria... Que maçada! Por que esse cara não calou a boca?
Anami contorceu o nariz extremamente enquanto pensava.
- O que significa isso? O que é isso? Quer dizer “não”? Vamos, anda, não seja chata, aproveita a vida! No total, são apenas quatro dias –Pediu e incentivou Lamaria, insidiosamente, com um largo sorriso no rosto–
Este breve comentário foi a gota de água que Anami precisava para se decidir sobre o assunto. Lamaria falou de aproveitar a vida, mas ela estava super-convencida de que Lamaria não tinha idéia do que era realmente ser feliz, a felicidade verdadeira, profunda, constante e eterna, a felicidade interna não estimulada pela ação , palavra, ou algo de bom que vem de fora de si mesmo. Por outro lado, Orwell parecia possuí-la e Anami percebera isso quando olhara no fundo dos olhos dele.
- Não obrigado, eu não quero coisa alguma –Respondeu suavemente–
- Por que não? Venha! Você vai ver como ficaremos bem. Não seja chata.
- Eu disse que não quero, obrigado –Anami respondeu com muita firmeza desta vez e segura de si mesma, enquanto mirava a amiga com olhares assassinos–
- Okay, okay. Não é grande coisa. Eu só queria te animar um pouco –Disse Lamaria, na defensiva, e ergueu as mãos como um prisioneiro de um filme de faroeste–
- E eu agradeço por isso que você fez –Disse Anami muito animada e eletrizada. E assim se re-conectou com a alegria inata de ter tomado a decisão certa com firmeza e segurança, mudando completamente de humor–
Anami fez em pensamento uma promessa firme de que, a partir de agora, testaria a sua auto-disciplina tanto quanto possível, seguindo o caminho que Orwell prosseguia mostrando para ela a cada dia. Queria se certificar de que realmente era o caminho mais bem sucedido e se funcionava. E para fumar teria tempo mais tarde, se então lhe parecesse o correto a fazer.
- Você quer ficar sozinha? –Perguntou, muito discretamente, Lamaria–
- Não. Eu preferiria sair para o pátio e comer alguma coisa com você e Orwell... Ele ainda está aqui? –Anami perguntou, com um grande sentimento de amor e respeito por ele–
- Sim, ainda. Venha, eu preparei uma deliciosa paella vegetariana e um bolo de chocolate que não leva ovo.
- Ótimo! Porque eu tenho muita fome…
Uma vez no pátio Anami encontrou Orwell sentado em uma cadeira confortável.
- Eu tenho algo a dizer, Orwell.
- Sim, eu sei. Agora é a hora de uma nova pesquisa. –Orwell respondeu sem ela ter tido tempo para terminar–
- Oh... Esqueci-me! –Expressou Anami, levando a mão à cabeça e tornando o rosto exasperado– Você sempre sabe o que eu penso antes mesmo de eu pensar.
Orwell respondeu com um simples gesto facial cheio de cumplicidade, inocência e malícia.
- Sim, eu não quero permanecer por mais tempo aqui. Eu vou adentrar o Circo do Sasta e encontrar o único ícone existente de Sat, o Supremo Senhor Verdadeiro.
- Fico feliz em ver que você já tem mais energia e tira proveito dela para continuar sua pesquisa –Disse Orwell, de uma forma muito paternal– Entre hoje e amanhã prepararemos a bagagem que precisam para poderem prosseguir.
- Eu poder? O que quer dizer com eu poder? –Anami perguntou, algo temerosa e confusa– Você não vem? Você não pode faltar! Não me deixe sozinha... Você tem que vir!
- Não, eu vou deixá-la sozinha. Lamaria vai com você e um de seus amigos. Eu já disse que sempre vou estar muito perto de você, seguindo seus passos, mas que é você quem tem de dá-los.
- Tá certo, você pode expressar isso como quiser, mas a verdade é que está sempre se retirando e deixando-me sozinha e isolada. É por causa daquelas vozes que antes de eu sair de minha casa me disseram que só poderia fazer a viagem sozinha?
- Se assim fosse, eu não teria dito "poderem" –Respondeu Orwell–
- Tenho de levar isso como uma afronta pessoal? –Comentou Lamaria, aparecendo naquele momento com uma paella grande em suas mãos– Será que por um passe de mágica me tornei uma mulher invisível? –Perguntou diretamente a Anami–
- Não, não é isso. Bem... Bem... –Balbuciou esta última–
- É que ela está começando a dedicar a mim certo carinho, mas não acredita inteiramente no que eu digo e sente medo que eu desapareça –Disse Orwell, segurando-a muito delicadamente e levantando seu queixo para incentivá-la a olhar para ele diretamente nos olhos e provar o imenso amor e sinceridade que havia em tudo o que ele dizia e sentia– Sim, Anami, vou manter-me perto todo o caminho até que você encontre e resgate a sua irmã gêmea, Mani. Embora nem sempre você possa me ver, eu estarei vendo você.
Anami sentiu um calor infinito em todo o seu ser e com nova força e coragem teve um grande desejo de recostar-se nos ombros de Orwell e dar-lhe um abraço. “Autocontrole” ouviu em sua mente e se conteve, mas não sem grande esforço.
Após terminar de comer e tomar um par de horas com a organização da viagem, Anami foi para seu quarto descansar um pouco. Sentou-se na cama na posição de lótus, com as pernas dobradas e cruzadas sobre elas mesmas de modo que cada pé se apoiava na coxa da perna oposta, mantendo as costas retas e ligeiramente recostadas na parede. Uma vez descontraída, ela se sentiu meio transportada.
De repente, Anami se desdobrou. Sim, havia duas Anamis idênticas sentadas na mesma posição e com a mesma roupa, uma em frente a outra, como se um espelho houvesse entre ambas, embora não houvesse. Ambas foram elevadas a um pé da cama, flutuando no ar, levitando. Mas não foi isso o que mais surpreendeu Anami. Ela estava surpresa ao ver-se duplicada, em outra versão de si mesma, porque se comparando com a outra Anami, percebia que era ela, sim, mas com uma cara muito mais dura, de sexo masculino, e muito mais escura. Como se fosse ela mesma, mas muito mais suja e com raiva.
Foi um impacto tremendo na Anami ver-se mais feia do que já se considerava e não me refiro a aparência física da tribo Iris em relação a Gonu, uma vez que Anami estava começando a se acostumar e apreciar o seu novo visual. Eu me refiro ao fato de encontrar-se diante da mesma Iris que ela via todas as manhãs no espelho, mas muito mais feia do que o normal de feiúra que via todos os dias quando se olhava no espelho.
Este estado de choque e surpresa de ser muito mais feia e “suja” do que se julgava foi o que a fez sair daquele estado de percepção especial e voltar a estar sozinha, sentada na cama em posição de lótus, ouvindo ao longe o som de uma gaita de foles vindo do nada e que já devia estar lá enquanto ela olhava para si mesma e para sua duplicata - mas Anami não percebera isso na época.
Com nariz enrugado de novo, Anami quebrou a quietude de seu corpo virando a cabeça e olhando em volta tentou compreender o que tinha acontecido. O ato único e simples de virar a cabeça já era um esforço enorme. Para fazer isso, tinha que concentrar toda a sua atenção sobre o movimento e com essa energia extra, e sem poder se mexer livremente, girou à duras penas sua muito pesada cabeça, que nem parecia pertencer a ela mesma.
Anami se manteve na mesma posição por alguns minutos tentando pensar sobre o que aconteceu sem chegar a qualquer resposta concreta, porque não conseguia descobrir qual das Anamis era realmente ela e qual era a outra diante dela. Se fosse a outra, como era possível ver-se do lado de fora, com olhos diferentes? E se ela era ela mesma, afinal de contas, quem seria era aquele outro ser idêntico a si mesmo e refletido em uma espécie de espelho inexistente, e que também sentia como se fosse ela mesma? Anami assistia tudo dentro de uma das duas Anamis confrontadas, mas ao mesmo tempo observava o que elas duas viam fora. Da mesma maneira, ela sentia a ambas, como se fizessem parte do mesmo ser.Anami começou a ficar com raiva de si mesma com este tipo de trava-língua mental em que se metera, e aí decidiu voltar para onde estavam Orwell e Lamaria. Iria limpar sua mente para não acreditar que estava começando a enlouquecer ou já havia enlouquecido.
Quando ela entrou na sala abruptamente, devido ao excesso de energia que acumulara mesmo sem ter consciência disso, Orwell, Jisto e Lamaria viraram juntos na direção dela.
- Oh, vejo que o tanque já está abastecido com gasolina –Tornou Orwell–
- E com essa que eu tenho que viajar? Como farei para pará-a quando meter o pé no acelerador? Atropela-nos de uma forma que a gente se sente violentado! –Perguntou Jisto, gesticulando de modo muito grosseiro e desagradável–
Lamaria percebeu o desconforto sentido por Anami e por sentir pena dela tentou amenizar as coisas:
- Não é tanque, nem vai violar nem atropelar. Esta é Anami, minha grande amiga, e estou muito feliz por estar viajando com ela se ela me deixa ir com ela. Se você não quiser vir, ou se você não gosta dela –Lamaria disse, enquanto olhava Jisto de forma muito agressiva– não tem que fazê-lo. Eu não me importo se Orwell aprova ou não. Não há necessidade de qualquer macho ao nosso lado! –inalizou, demonstrando muito desprezo–
Anami estava desconfortável. Ela não sabia onde se meter ou o que fizera para provocar tudo isso. Ela tinha acabado de abrir a porta e apenas entrado na sala. Nem mesmo uma única palavra havia dito.
- Anami, vem, senta aqui —Orwell sugeriu, apontando um largo espaço na área de assento em que estava—
Anami aproximou-se dele, um pouco insegura, e franzindo um pouquinho o nariz e acomodou-se muito modestamente.
- Anami, esse cabra é Jisto. Ele vai acompanhar vocês durante o percurso –Anunciou Lamaria enquanto Jisto se levantava de sua poltrona e agitava as mãos num gesto de paz e amizade– E não se preocupe, embora pareça um bode bravo é realmente um tonto –Finalizou, mostrando a língua desafiadoramente para Jisto–
Jisto não conseguiu ficar bravo com a atitude de Lamaria, que falando assim de forma tão humorística desarmou a tensão criada e todos eles sorriram.Ainda assim, Anami não achou muita graça na idéia de começar com Jisto viagem de aventura tão difícil para as suas emoções e por causa da gravidade do caso e das possíveis conseqüências se não conseguissem cumprir e superar as provas que tinham diante de si para resgatar sua louca e deformada irmã gêmea, Mani.
Uma onda de nostalgia percorreu Anami. E então se sentiu mal por não ser capaz de se lembrar do rosto de sua irmã. Sim, recordava muitas e muitas cenas diferentes; e conversas, momentos compartilhados juntas e, acima de tudo, a censura, abusos e desprezo de sua parte para com Mani. Mas Anami não podia ver, mesmo se você fechasse os olhos e colocasse seu esforço total nisso, era o rosto da sua irmã, o seu aspecto físico. Claro, tão pouca atenção lhe dera ao longo dos anos…
Quis justificar-se por ser Mani fisicamente deformada e mente normalmente se lembrar de forma mais clara das lembranças harmoniosas e agradáveis, em detrimento da imagem de um ser completamente feio, horrível como a irmã gêmea Mani, um flagelo não só para Anami e sua família mas para todas as pessoas.
Um sonoro arranhar de garganta feito propositalmente por Orwell tirou Anami de seu devaneio. Ela abriu os olhos da cor de um caramelo e viu à sua frente um Jisto muito mais inseguro do que se tinha mostrado até então. Ele estava a seus pés, o rosto completamente vermelho e estendia a mão trêmula como a aguardar uma resposta. De vez em quando olhava de esguelha para Orwell e Lamaria procurando uma sugestão sobre como lidar com uma Anami que parecia ignorá-lo completamente.
Anami imediatamente se levantou e chocou sua mão com a dele, numa agitação vigorosa.
- Encantada, Jisto. Estou Anami –Respondeu uma sorridente Anami, como se aquele fosse o segundo primeiro encontro de suas vidas–
Uma vez que todos retornaram aos seus lugares, Anami ficou livre para observar um pouco mais dele. Como eles estavam para viajar juntos, o melhor era conhecer o mais possível a respeito de seus companheiros.
Quanto mais o olhava, mais tinha a sensação de que já o tinha visto antes.
- Talvez tenha sido numa das muitas noites em que ele veio quase em segredo para se divertir na cama com Lamaria - Anami ponderou consigo mesma–
Jisto era um Iris que media cinco centímetros mais do que o normal entre os de sua raça. Cinco centímetros para nós podem parecer poucos, mas para um Íris que no máximo pode medir um metro e vinte de altura, cinco centímetros podem significar que ele se sobressaia muito perante todos os demais.
Jisto tinha cerca de 27 anos e a cor de sua pele, como a de todos os membros da tribo Íris, era um azul muito suave. Seus ouvidos, como aqueles que Anami agora tinha, eram pontiagudos, projetados e muito, muito finos.
Tudo nele era muito magro e fino: mãos, pés, rosto, seu corpo... Seus cabelos, como os de Lamaria e de todos os Iris eram loiros numa cor dourada suave e muito longos, até quase a altura das nádegas. Jisto os mantinha presos num coque enrolado por uma comprida lasca de madeira.
Vestia-se de modo fino, elegante e um pouco hippie. Ele usava um casaco de linho branco com uma camisa de cetim amarelo-claro cheia de pequenos pontos verdes. Acompanhava o traje com as sandálias de tiras amarradas até a metade das panturrilhas, num tom de jasmim verde, verde vivo…
Anami estava observando-o atentamente. Durante quase todo o tempo que estavam juntos, Jisto tinha a mão direita no bolso da calça. Anami teve a impressão de que ele estava sempre acariciando ou aquecendo o membro ou pêlos pubianos. Além disso, várias vezes Anami "pegou" Lamaria e Jisto trocando insinuações sexuais.
Depois do jantar com os quatro juntos, Anami se levantou para ir ao seu quarto e deitar. Jisto deixou quase no mesmo instante o salão para ir ao banheiro e quando se esbarraram no caminho, perguntou:
- É você que me rejeita tanto quanto eu o sinto ou sou eu que me sinto rejeitado e por isso te rejeito também?
Anami estava completamente fora de ação. Claro estava que ambos sentiam uma espécie de rejeição mútua, mas não esperava ouvir sobre essa questão de maneira tão aberta, direta e sincera.Você me desmontou agora –Disse Anami– Agora eu não vou ser capaz de dormir! –Acabou dizendo– Por que tornamos tão complicada a vida com perguntas como essa? –Ela se perguntou, com o semblante pesado, quando já estava sozinha em seu quarto–
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Capítulo 6, Parte II: "A Família Vesga"
Anami estava na casa onde cresceu com seu pai e sua louca e deformada irmã gêmea Mani. Ainda estava na cama. Já amanhecera e como de costume, quase sempre em sua vida, ela se levantou para ir ao banheiro e urinar. Ela sentou no vaso aberto e mijou com grande sensação de alívio e prazer por liberar sentada a urina contida.
Uma sensação muito agradável e quente percorria as pernas frias e intumescidas de Anami, estendendo-se gradualmente ao longo delas e outras áreas de seu corpo, até que o calor foi se tornando gelado.
- O que é isso? O que acontece? –Pensou–
Anami abriu os olhos e então percebeu a verdade: ela havia urinado sobre si mesma. E a posição agachada em que dormira fez com que a poça de xixi encharcasse não só a saia do vestido, mas também o alto, as mangas, os cabelos, o seu rosto e o cobertor que a cobria.
O frio era conseqüência de ter permanecido bastante tempo em roupas molhadas metida na poça de urina que tinha enregelado até seus ossos…
Anami, sem sequer mover-se, levantou ligeiramente a ponta do cobertor para olhar e ver se o abutre leonado ainda estava lá fora. Olhou para o lugar onde ele tinha estado antes dormindo e não o localizou. Tentou olhar o máximo que poderia alcançar sua visão. Devagar e com alguma cautela, ergueu o cobertor e se levantou para sair imediatamente do local, mas naquele momento ouviu um chiado suave de urubus. Ela olhou rapidamente na direção de onde vinha o som e avistou um abutre, a apenas três metros de distância. Antes não o percebera porque o abutre estava na parte traseira e fora do seu campo de visão. A ave permaneceu imóvel, olhando-a fixamente. Repetiu seu som baixinho mais duas vezes. A Anami deu a impressão de que ele estava rindo, sorrindo dela e afundou-se no chão, muito desmoralizada e quase chorando. Estava cansada, faminta, sedenta e ainda com sono. Sentia muito frio e suas feridas doíam muito, mais irritadas agora com a amônia da urina. Para piorar, ela se sentiu muito humilhada. Quanto teria gostado que ao menos este abutre fosse como os condores e outras espécies da família - sem voz devido à ausência de siringe, o órgão da fonação!
- Está bem. Eu desisto. Você venceu –Disse para o pássaro, com uma voz quase inaudível–
Como se soubesse o que ela tinha dito, o pássaro alçou vôo na direção contrária àquela da cidade que Anami tinha visto logo antes de dormir, e o fez cuidando sempre de certificar-se que Anami o estava seguindo. Após duas horas de caminhada, eles chegaram a um ossuário. O lugar fez Anami estremecer. Exalava o cheiro de ovos podres e apenas se via as colunas hexagonais de basalto em que pisavam, muitas vezes, rachando e quebrando os ossos com sua passagem. Anami como uma dama da corte tempos antigos, andando em torno de um salão em busca de um nobre e rico, que deveria cortejar. Caminhava quase na ponta dos pés, enquanto as duas mãos seguravam a saia, levantando-a levemente para não tropeçar e assim evitar que algum osso sujo se enroscasse nela e aumentasse ainda mais o fedor que já havia.
Eles chegaram a uma casa isolada na borda do campo de ossos. Se não houvesse alguém sentado esperando do lado de fora, diante de uma porta enegrecida, Anami nem teria percebido que se tratava de uma casa. Tanto à sua frente como na sua esquerda e direita, atrás e debaixo de seus pés, perfilavam-se numerosas colunas de basalto hexagonais de diferentes comprimentos e espessuras. A casa se encontrava à esquerda e ficava em uma coluna era igual a todas as outras, com uma altura de cerca de dez metros, com a diferença que esta coluna tinha sido escavada para dentro. Ela não tinha janelas e a porta, pintada de cinza-escuro, media cerca de sessenta centímetros de altura e também de largura, localizada a vinte centímetros do solo, mais ou menos.
À direita da porta, sentado de pernas cruzadas na posição de lótus, estava um Vesga que se cobria com um pequeno poncho de lã roxa com desenhos de pássaros e folhas de cor fúcsia bordados nele. Vesga é o nome que se dá a tribo dos habitantes de Palun. Eles têm uma forma física igual a que possui agora Anami, mas sua cor é laranja suave, com asas em suas costas e pés; as orelhas são pequenas e os ondulados cabelos castanhos chegam à altura dos ombros, geralmente repartidos em uma ou várias tranças, tanto eles como elas. Eles têm uma constituição física atlética, fina e elegante, um metro e trinta centímetros de altura e usam uma roupa colorida e casual, sempre acompanhadas de botas que protegem os pés contra a temperatura das pedras, de acordo com a época do ano, e inclusive para se proteger de possíveis cortes provocados pelos cantos das pedras de basalto e dos espinhos das plantas baixas e médias.
Anami queria ver melhor a figura sentada à direita da porta, mas esta mantinha a cabeça abaixada e com o poncho caindo sobre ela, portanto não conseguia distinguir sua idade ou sexo.
E sem se preocupar em olhar para ela, a figura acenou com a cabeça indicando que Anami devia passar para dentro da casa. Então, como se ela não houvesse compreendido ou simplesmente para incentivá-la a fazê-lo mais rápido, o abutre lhe deu uma bicada em sua nádega, ao que a figura que estava sentado respondeu com uma grande gargalhada, deixando Anami danada e com vontade de chorar, algo que mal pode disfarçar.
Anami empurrou a porta e respirou fundo antes de entrar. Esperava encontrar um lugar escuro e lúgubre, cheio de ossos, entulhado de coisas, escuro e mal cheiroso. Em vez disso, deparou com uma casa muito limpa, bem cuidada e aromatizada. A porta era uma espécie de túnel pequeno como quando você penetra as muralhas de um castelo, mas muito mais estreita. Na verdade, Anami atravessou toda sua extensão andando de quatro. Depois veio uma grande sala cheia de plantas e arbustos com frutos comestíveis muito estranhos a Anami, que pareciam irradiar uma luz própria verde, especialmente na base e folhas. No centro, havia um pequeno lago com cascatas feitas por diminutas colunas hexagonais de basalto que criavam vários vórtices. Um motor pequeno e silencioso bombeava a água que subia por uma pequena pedra oca e tubular. Outro gasoduto trazia a água da chuva lá fora para o tanque através de vários outros tubos vazados. O interior do tanque estava fracamente iluminado.
Uma escadaria gigantesca em espiral seguia para cima ao longo de todas as altas paredes da sala, cercando-a formando com ela um corpo único. Cada etapa consistia de uma nova coluna de basalto hexagonal que surgia a partir da base da casa. A escada levava a vários arcos que acessavam algumas pequenas salas e que serviam como habitações.
Um aroma muito agradável e doce de lavanda e limão dava uma sensação muito relaxante de limpeza a qualquer um que penetrasse na área.
O que mais surpreendeu Anami foi o tipo de iluminação do local. Procurou a fonte da luz e não a descobriu. Só viu uma grande massa amarelo-brilhante no teto, feito uma lâmpada plana de alta tensão. A luz oscilava a um intervalo ligeiramente intermitente e periódico. Mas nos momentos em que a grande massa do telhado retirava sua luz amarela, a escuridão não reinava sobre o lugar e uma luz muito suave esverdeada era irradiada a partir de todas as plantas que ocupavam quase toda a base do salão principal e de alguns dos pequenos buracos nas paredes. Isso produzia uma luz ambiente que permitia ir por todo o lugar sem qualquer problema.
Anami procurou dispositivos eletrônicos e não os encontrou. Era como se tivesse recuado no tempo para uma época anterior à industrialização.
- Como podem gerar esta luz? –Ela se perguntou enquanto ia tentando desvendar o mistério–
- Vem, sobe! A primeira coisa que vais fazer é tomar um banho e tirar estes trajes mal-cheirosos e sujos, senão vais terminar por estropiar a minha casa e isso não admito –Anami ouviu que lhe chamavam com grande autoridade a partir de algum lugar no topo da casa–
Anami olhou para cima e distinguiu uma mulher Vesga velha e um pouco encurvada, de uns oitenta anos, que estava fazendo gestos com as mãos, assim, convidando-a para que entrasse no terceiro quarto subindo pela escada em espiral que contornava as paredes da sala.
Algo insegura, muito devagar, amarrotando a orla inteira de sua saia à altura do ventre e movendo-se muito pegada à parede, já que a escada não tinha corrimão onde se apoiar, uma Anami terrivelmente assustada caminhou até sua suposta anfitriã.
Quando chegou lá, desejou fazer uma série de perguntas, mas nada disso foi intuído pela Vesga idosa, que fez um gesto com a mão sobre a boca pedindo-lhe para se calar e nada perguntar, não lhe dando nenhuma opção.
- O banheiro é aqui. Nós colocamos óleos essenciais de alecrim na água do seu banho para desinfetar as suas feridas. Você também vai encontrar roupas limpas e botas que eu acho que vão servir. Elas pertenciam a minha nora. Isso que você está vestindo guarde em uma cesta de palha que eu deixei ao lado da roupa limpa e queimarei mais tarde. Você tem cerca de quatro horas para se banhar, relaxar e ficar sozinha. Depois, suba até o primeiro quarto indo por estas escadas. Lá você vai encontrar preparada alguma comida e bebida. Somente então você estará pronta para fazer perguntas e, sobretudo, ouvir o que tem de ouvir –Expressou a anciã, saindo da sala sem dar possibilidade de conversação–
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Capítulo 9, Parte II: "A Rodada"
Tanto para Rengo como para Anami o tempo tinha voado. Em questão de horas que eles sentiam como minutos, a corneta que convocava para a ronda grasnou com seu som potente ecoando em toda casa caverna, estendendo a sua onda sonora até as várias linhas de montanhas.
- A ronda! Já! Quão rapidamente o tempo passou! –Rengo exclamou, alongando as costas–
- Eu também achei. –Disse Anami–
- Vamos? Não é certo ou respeitoso chegar tarde –Sugeriu Rengo, endireitando o corpo e estendendo a mão à amiga para ajudá-la–
A ronda era uma sala cheia de cadeiras confortáveis, poltronas e sofás colocados formando uma espécie de círculo. Cada membro da comunidade de casas de caverna ia se aproximando e sentando nos lugares que aparentemente já tinham sido indicados anteriormente como lhes era devido, embora estivesse claro que hoje haveria uma pequena mudança nesta ordem, uma vez que eles deixaram um assento vago para Rengo ao lado do de Anami.
Absolutamente todos os presentes eram Plugis ou Simpayes e praticamente a mesma quantidade de machos e fêmeas. Era grande a variedade de idades, havendo inclusive cachorros.
As famílias eram formadas por machos e fêmeas ou machos e fêmeas com filhotes e todos se sentavam sempre juntos.
Uma vez que todos tinham tomado as suas posições, um Plugi que parecia o chefe da comunidade apresentou muito respeitosamente Anami aos demais e começou a organizar e distribuir as diferentes tarefas para o dia seguinte.
Mais tarde, todo mundo estava falando sobre eu queria. Comentavam coisas que haviam sentido, coisas que eles queriam fazer no dia seguinte ou em breve, falavam de alguém, refletiam sobre Sat, o Senhor Supremo Verdadeiro e outros assuntos.
Um casal de jovens Simpayes chamou em especial a atenção de Anami: eram Boly e Grena. E chamavam a atenção porque, apesar de serem um casal, passavam quase todo o tempo saltando e cutucando-se, e mais de uma e outra vez seus olhos mostraram uma compreensão e capacidade de apoio mútuo muito, muito grande. Ambos pareciam ter uma relação muito passional.
A imagem deles percebida por Anami foi que Boly, cerca de 23 anos, estava sempre lutando dentro de si e que Grena, um pouco mais jovem que ele, com seus 21, era muito insegura, possuía um grande medo da morte e da dor, bem como parecia pouco inteligente. De fato, Grena gesticulava demais e isso para Anami sugeria algo de teatral.
Naquela mesma noite, apesar de ser Anami novata e praticamente desconhecida no grupo, o chefe da comunidade perguntou se no dia seguinte Boly poderia fazer não entendeu bem o quê, Grena, muito dramaticamente, começou a chorar após a resposta afirmativa entusiástica da parte dele.
Quando questionada sobre qual foi o motivo daquela reação, Grena reprovou Boly porque este tinha prometido no dia anterior que, após a reunião, os dois passariam juntos o tempo todo, caminhando e descansando, desfrutando o amor que dedicavam um ao outro.
Grena sentiu magoada e ofendida por Boly, porque achou que ele não quisesse ficar com ela ou não estivesse animado para fazer isso e finalmente esquecera o compromisso. E se isso aconteceu, ela julgava que foi porque ele quis mostrar a todos os presentes - e especialmente ao chefe da família - que era Grena quem queria sozinha que os dois passassem o dia juntos e sozinhos e não Boly (de quem havia partido a idéia e a oferta), nem de ambos. Com isso, Boly não demonstrava lhe dar mais atenção nem maior prioridade do que aos outros.
Mas o que realmente surpreendeu Anami foi a resposta de Boly a ela, deliciando-a. Para tanto, Boly olhou diretamente nos olhos do Grena irradiando um grande amor e grande entendimento, resultando na outra ainda mais lágrimas... Lágrimas de amor…
Devagar e com cuidado, diante de todos, Boly fez Grena entender que isto estava acontecendo naquele momento por um ataque sutil de seu ego ao pensar no outro como ela mesma era, não como o outro é. Demonstrou muito claramente que precisamente por esta atitude e pelos pensamentos dela naquele momento, seu ego não permitia que ela fosse livre em seu interior. Com sua atitude, Grena pretendia mudar Boly, porque muitas vezes ocorria dele se comportar de maneira um tanto descuidada e esquecida, pensando só no trabalho pendente e em nada mais que isso. Deixou bem claro para ela, na frente de todos, que não agia assim por amá-la pouco ou não querer dedicar-se exclusivamente a ela ou por não lhe dar prioridade…
Mas não foi só aqui que Boly deixou Anami espantada com sua resposta e reação calma a uma explosão emocional de Granada, mas várias vezes mais, como aquela em que Boly disse algo que Anami não entendeu muito bem mas que resultou em uma reação fortíssima da parte de Grena.
- Por que me sinto contigo como uma prostituta rejeitada, criticada, enganada e deprimida? O que há em mim que me faz sentir desse jeito? Você pode me ajudar, por favor, para que não me sinta assim? –Disse Grena, gesticulando muito–
- Eu não faço nada mais que me perguntar o que eu posso fazer para você se sentir melhor.
Enquanto falava, Rengo ia observando a reação de surpresa de Anami e por isso sussurrou-lhe depois:
- A peleja não é sobre o que o outro tenha dito ou se disse a verdade ou se está certo ou se tem alguma culpa... mas sobre os sentimentos de cada um.
Pouco depois, surgiu outra crise em que reprovações foram trocadas por quatro daqueles que lá viviam, e o chefe da comunidade, levantando sua voz, entrou em ação:
- Viver no presente não significa não olhar para o futuro ou o passado. Viver em consciência é de ver tudo em todas as direções.
Anami ficou muito abalada…
Uma vez que a ronda acabou, o chefe da comunidade se dirigiu exclusivamente a Anami antes que os demais levantassem para sair e perguntou:
- Bem, Anami, você já conheceu nossas casas de caverna e já participou de uma ronda. Eu não sei se Rengo te explicou como vivemos, nossas regras, ou se ele se perdeu a falar com você de outras histórias. Mas você já esteve aqui horas suficientes para aprender um pouco sobre nós e como tudo isso funciona. Você realmente quer ficar com a gente? Você sabe o que isso implica?
- Para falar francamente, eu não tenho muito claro o que isso implica e falando-me abertamente como estás fazendo, me assusta um pouco. Primeiramente, é claro que eu quero passar mais tempo com vocês e, inclusive pelo que ouvi hoje na ronda, eu percebo que está se avizinhando um tempo duro e difícil, mas eu tenho certeza que ele será bastante instrutivo e me ajudará a crescer em sabedoria –Anami respondeu a todos–
- Sim, é muito provável que aconteça dessa forma. Entretanto e precisamente por isso que nós queremos que tudo fique bem claro antes que você nos diga um sim. Não precisa responder hoje, você pode fazê-lo amanhã.
Nós gostamos de apostar alto naquilo em que nos aplicamos, vivendo na maior verdade que formos capazes de alcançar dentro de nós mesmos.
Portanto, não nos basta conhecermos a nós mesmos, mas aqui nos dedicamos a treinar este auto-conhecimento e auto-controle para aperfeiçoarmos o resultado da sabedoria alcançada.
